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quarta-feira, 19 de abril de 2017

A cesta de três de Andrés Nocioni que mudou a história

Texto de Pedro Torrijos: "El triple de Andrés Nocioni", escrito em setembro de 2013

A coroa azul se contrai de forma quase imperceptível; apenas um décimo de milímetro. O suficiente para que a pupila seja afetada por toda a luz que é capaz de absorver. Do outro lado de seu olhar, Manu Ginóbili acabou de soltar a bola.

Argentina
Héctor "Pichi" Campana sorria após ganhar aos Estados Unidos em Oviedo por 74 x 70. Mas era um sorriso amargo. Fazia menos de um mês desde que Jorge Burruchaga superou a Schumacher pela terceira vez e Diego Armando Maradona levantou a taça dourada da Copa do Mundo da FIFA no Estádio Azteca, no México. Diego Maradona, "O Dez".

Em 1986, Pichi Campana era o mais parecido a um ídolo que existia no basquete argentino, o basquetebol; mas claro, não era Maradona. Ele nunca havia jogado fora das fronteiras de seu país; um país cuja paixão estava dominada de forma avassaladora pelo futebol e no qual quase qualquer outra prática esportiva - incluídos o rúgbi e o basquete - era considerada pouco menos do que marginal. Ademais, o único êxito internacional relevante do basquetebol argentino havia sido durante o primeiro Campeonato Mundial; o de 1950, que foi jogado no velho Luna Park de Buenos Aires. Também haviam vencido aos Estados Unidos, mas daquela vez foi numa final e a alvi-celeste levou a medalha de ouro.

A vitória de Oviedo apenas significou um triunfo moral, pois a Argentina já estava condenada a não avançar à fase final do torneio. Um torneio que acabaria vencido por esta seleção estadounidense, comandada pelos universitários David Robinson, Steve Kerr e Muggsy Bogues.

No entanto, em 2002 e outra vez frente aos Estados Unidos, o basquete argentino - e o de todo o globo - nunca voltaria a ser o mesmo.

Aconteceu em 4 de setembro, no Conseco Fieldhouse de Indianápolis, e já não eram mais universitários: Baron Davis, Reggie Miller e Paul Pierce formavam uma seleção integrada exclusivamente por jogadores da NBA. Em frente a eles estavam Juan "Pepe" Sánchez, Manu Ginóbili e Andrés Nocioni. A Argentina derrotou aos Estados Unidos por 87 x 80 e sim, o conjunto norte-americano estava longe de ser o melhor possível, mas, contudo, foi a primeira vez que uma equipe estadounidense composta por jogadores da NBA caía. E não foi a última. Neste mesmo Mundial, os norte-americanos seriam igualmente vencidos pela Iugoslávia e pela Espanha, relegando-os assim a um desonroso sexto lugar.

Para os Jogos Olímpicos de 2004, a seleção dos Estados Unidos se rearmou convenientemente. Ainda não incluía a algumas de suas estrelas mais brilhantes do basquete profissional, mas não era um esquadrão de segunda linha. Em 27 de agosto, nas semi-finais dos Jogos da XXVIII Olimpíada enfrentaram, no Helliniko Olympic Arena, de Atenas, a uma seleção norte-americana composta por nomes como Tim Duncan, Allen Iverson, Dwyane Wade, e um jovem de vinte anos chamado LeBron James. Do outro lado, a equipe argentina era comandado por Ginóbili, Sánchez e Nocioni, mas também por Luís Scola, Carlos Delfino e Fabricio Oberto. A partida foi áspera, ainda que aberta. A Argentina terminou levando-a por 89 x 81. Os jogadores sul-americanos tiraram suas camisetas e dançaram no meio da quadra. "A FIBA fede!", cuspia Tim Duncan.

No dia seguinte, a alvi-celeste arrasaria a Itália e acabaria levando a medalha de ouro olímpica e a coroa laureada. Ficou chamada "A Geração Dourada".

A cesta de Andrés Nocioni: quando a bola laranja tocou as pontas de seus dedos, todo o corpo de Andrés Nocioni já estava preparado. Estava preparado desde antes de receber a bola. Desde antes da partida. Desde que era um menino em Santa Fé. Com o tato rugoso da pele, os impulsos elétricos passam por cada filamento nervoso a caminho de uma única ordem. É um gesto automático, instintivo, quase fora da ordem natural. Os pés paralelos e o quadril perpendicular à linha de fundo, a cintura levemente oblíqua, os ombros enquadrados e o olhar fixo num aro a pouco mais de 6,25 metros.

Espanha
A Seleção Espanhola de basquete colheu no Mundial de Basquete de 1986, celebrado em seu próprio país, o mesmo êxito que tiveram suas equivalentes de futebol na Copa da Espanha de 1982 e do México de 1986: eliminadas nas quartas de final, eliminadas nas quartas, eliminadas nas quartas. E isto contando que, de alguma maneira, e pese que o rei seguia sendo o esporte da bola no pé, nos anos 1980 o esporte da cesta estava experimentando uma moderada relevância dentro de suas fronteiras. Relevância que aumentaria com o começo das transmissões de jogos da NBA em fins daquela década, mas que, sem dúvida, havia começado a se formar graças ao êxito - desta vez sim - que a equipe de Juan Antonio San Epifanio, o "Epi", Juan Antonio Corbalán e Juan Manuel López Iturriaga obtiveram nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984, onde alcançaram a final do torneio e só caíram para a poderosíssima seleção local, que contava com futuras estrelas como Patrick Ewing, Chris Mullin e o mesmíssimo Michael Jordan.

No entanto, o fiasco de 86 e uma nova derrota nas quartas em Seul 1988 antecipavam a tormenta perfeita que açoitaria o basquete espanhol quatro anos depois: "El Angolazo".

Nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, a seleção local caía logo na fase classificatória depois de uma vergonhosa derrota por 83 x 63 frente a Angola, que formava junto à China a dupla de supostas "Cinderelas" daquele torneio. Uma seleção chinesa que novamente afastaria a Espanha da luta por medalhas no Mundial de 1994.

"El Angolazo" e "El Chinazo" significaram o fim da geração de Los Angeles 84. O conjunto treinado por Antonio Díaz Miguel tocou o topo de qualquer selecionado espanhol de basquete e marcou o ponto mais baixo de qualquer selecionado espanhol.

Lolo Sainz não pode remontá-lo em 1994 e o time espanhol começaria um processo de regeneração que o levaria à deriva durante toda uma década. Sequer se classificou para os Jogos de Atlanta 1996, foi eliminado nas quartas no Mundial de 1998, na primeira fase nas Olimpíadas de Sidney em 2000, e a um quinto lugar no Mundial de Indianápolis em 2002. Nos Jogos de Atenas em 2004, Espanha cairia - sim, adivinharam - de novo nas quartas de final, frente à seleção dos Estados Unidos, que posteriormente seria derrotada pela Argentina. No entanto, na esquadra espanhola já figuravam alguns jogadores que estavam destinados a mudar o basquete espanhol.

Foi em 25 de julho de 1999 no Pavilhão Atlântico de Lisboa. Na final do Mundial sub-19 ela enfrentava a uma seleção norte-americana recém saída da escola, mas que incluía futuros profissionais da NBA, como Nick Collison e Keyon Dooling. Do outro lado da quadra jogavam uns garotos de apenas 18 anos e grande projeção. Chamavam-se Carlos Cabezas, Juan Carlos Navarro, Berni Rodríguez, Felipe Reyes e Pau Gasol.

A Espanha venceu por 94 x 87. Eles ficaram sendo chamados "Os Juniors de Ouro".

A cesta de Andrés Nocioni: os braços se levantam, a munheca direita quebra para frente e, no espaço infinito de sua mão, pode-se notar cada pequena protuberância que envolve a bola, cada letra impressa nela e cada costura. Desde a base da palma até o último extremo da última gema do último dedo. No horizonte de sua periferia vê - porque sabe com certeza - que Rudy Fernández não o alcançará com um tapa. A bola já está no ar.

Argentina x Espanha
É 1º de setembro de 2006, o Saitama Super Arena está cheio, com 17.000 espectadores, para assistir à semi-final do Campeonato Mundial de Basquete Masculino que se celebra no Japão. Em quadra, a alvi-celeste de Ginóbili, Nocioni e Scola frente à seleção espanhola de Pau, Navarro e Berni, mas também de Jorge Garbajosa e José Manuel Calderón.

O jogo é físico e enormemente disputado, pois ambos os times sabem que um par de horas antes, a Grécia de Spanoulis, Diamantidis e Papaloukas havia vencido, contra todos os prognósticos, a um conjunto estadounidense que tinha, entre outros, ao futuro "Big Three" de Miami - Wade, James e Chris Bosh - aos que se somavam superestrelas como Carmelo Anthony, Chris Paul e Dwight Howard. A medalha de ouro parecia, de repente, um objetivo mais acessível. Mas não nos enganemos, Argentina e Espanha lutariam igualmente com unhas e dentes quem quer que lhes esperasse na final.

A disputa inicial foi para a equipe sul-americana, que abriu vantagem de mais de 10 pontos. No entanto, em meados do segundo quarto, o jovem Sérgio Rodríguez revolucionou o embate à base de bolas de três, penetrações e contra-ataques. No descanso da partida, o resultado era de 40 x 38 a favor da Espanha.


A segunda metade foi cheia de interrupções e lances livres. Quando a bola não estava na linha de lance livre, Garbajosa, Ginóbili, Pepe Sánchez e Walter Herrmann bombardeavam desde o perímetro; Pau lutava contra Scola, Oberto e Rubén Wolkowyski na zona pintada; Carlos Jiménez nos rebotes, Rudy Fernández fazendo suas cestas e Nocioni, como ala que é, convertia-se numa ameaça em praticamente qualquer ponto da quadra.

Quando restava um minuto e meio para o final do encontro, Pau Gasol se lesionou no pé esquerdo. O barbudo Pau, que em apenas cinco anos se havia convertido numa estrela da NBA e que não se parecia quase nada ao garotinho sem barba que perdeu para os Estados Unidos em Atenas. O melhor jogador da seleção espanhola não poderia finalizar o jogo, ainda que lhe restassem forças para meter os dois lances livres e deixar a sua equipe seis pontos adiante no placar.


Uma cesta de três de Pepe Sánchez, uma infiltração quase impossível de Manu, dois lances livres de Scola e outros dois de Calderón - em jogadas alternadas - colocaram o encontro com um ponto a frente para o combinado espanhol.

Faltavam 19 segundos, a bola era da Argentina e a bola, com certeza, estava em poder de Emanuel Ginóbili, o garoto de Bahía Blanca, o capitão. Busca-se uma penetração pelo centro do garrafão, mas Garbajosa interfere, buscando forçar a falta de ataque. Com o caminho fechado, o 5 da alvi-celeste olha para a direita e encontra a seu companheiro no canto da quadra.

A iris azul de Andrés Marcelo Nocioni se contrai de maneira quase imperceptível; apenas um décimo de milímetro. O suficiente para que a pupila seja afetada por toda a luz que é capaz de absorver. Do outro lado de seu olhar, Manu Ginóbili acabou de soltar a bola. Quando a bola laranja tocou as pontas de seus dedos, todo o corpo de Andrés Nocioni já estava preparado. Estava preparado desde antes de receber a bola. Desde antes da partida. Desde que era um menino em Santa Fé. Com o tato rugoso da pele, os impulsos elétricos passam por cada filamento nervoso a caminho de uma única ordem. É um gesto automático, instintivo, quase fora da ordem natural. Os pés paralelos e o quadril perpendicular à linha de fundo, a cintura levemente oblíqua, os ombros enquadrados e o olhar fixo num aro a pouco mais de 6,25 metros. Os braços se levantam, a munheca direita quebra para frente e, no espaço infinito de sua mão, pode-se notar cada pequena protuberância que envolve a bola, cada letra impressa nela e cada costura. Desde a base da palma até o último extremo da última gema do último dedo. No horizonte de sua periferia vê - porque sabe com certeza - que Rudy Fernández não o alcançará com um tapa. A bola já está no ar.

E gira.

Durante menos de um segundo. Durante mil dias e um cosmos. Durante mil flashes e 17.000 respirações presas, a bola gira. O efeito até que o ar que a envolve gere as forças de sustentação necessárias para que ela desenhe uma parábola perfeita. Um arco invisível com um destino único.

Às 21:42 de 1º de setembro de 2006, na Saitama Super Arena não há nada mais. Só uma bola de basquete no ar.

E gira.

Dentro.

A bola atravessa limpa o aro da Seleção Espanhola sem tempo para nada mais. Soa o sinal. A Argentina vence a Espanha por 77 x 75.

Dois dias depois, a equipe sul-americana passará por cima da seleção grega reclamando a medalha de ouro e colhendo assim um duplo título formidável, que unia a coroa do Mundial à dos Jogos Olímpicos de 2004. A Geração Dourada era mais dourada do que nunca.

De seu lado, a Espanha não se recuperaria do golpe da semi-final e cairia frente à esquadra norte-americana na partida pelo bronze. Nos anos seguintes, a equipe espanhola seguiria contando com jogadores de grande capacidade, mas nunca chegando a estar tão cerca de uma final e voltar à maldição das quartas. Em Pequim 2008 e em Londres 2012, terminaria novamente fora das medalhas; e inclusive em campeonatos europeus tendo apenas disputado uma semi-final, a do EuroBasket 2007 jogado em Madrid. Pareceria como se estes homens de enorme talento e grandes atitudes, estes homens que disputavam na ACB e na mesma NBA não haviam podido sobrepor-se, ficaram a uma distância tão curta da final. À distância de uma cesta de três.

Ainda que tenha passado o tempo e minha memória não seja muito boa. Agora que me lembro, talvez não tenha acontecido assim.

E aqui terminou o texto de Pedro Torrijos... Abaixo, a história como ela passou...

Semi-final do Mundial 2006
ESPANHA (15 + 25 + 20 + 15): 75
José Calderón (7), Juan Carlos Navarro (4), Carlos Jiménez (4), Jorge Garbajosa (19) e Pau Gasol (19).
Téc: José "Pepu" Hernández
Banco: Carlos Cabezas (2), Rudy Fernández (4), Sérgio Rodríguez (14), Berni Rodríguez (0), Álex Mumbrú (0) e Felipe Reyes (2).
ARGENTINA (21 + 18 + 17 + 18): 74
Pepe Sánchez (13), Manu Ginóbili (21), Andrés Nocioni (15), Luís Scola (8) e Fabrício Oberto (2).
Téc: Sérgio Hernández
Banco: Pablo Prigioni (0), Carlos Delfino (3), Wálter Herrmann (6) e Ruben Wolkowyski (6).

A tática estava clara: bolas para Gasol. O pivô do Memphis Grizzlies não deu as costas a seus companheiros, ele se lesionou, mas conseguiu dois pontos cruciais. O garoto de Sant-Boi é crucial para a Espanha e espera-se que esteja em condições para jogar a final. Faltando 22 segundos, Rudy fez falta em Scola. A bola estava com o jogador do Tau Cerámica Baskonia. E ele não falhou.

Outra vez igualdade no placar. Os argentinos não queriam que a Espanha tivesse o último ataque e fizeram falta em Calderón. O armador do Toronto Raptors errou o primeiro e converteu o ponto mais importante de sua vida (e o da Espanha). Com um de vantagem, Pepu optou por não fazer falta e deixar a responsabilidade para os argentinos que, desta vez, falharam. Nocioni ficou sozinho na lateral, arremessou, a bola girava no ar, o ginásio congelado, por todas as partes do olhos vidrados nas telas de televisão mundo a fora, corações que pareciam parados, respirações presas. A laranja amassava o aro! Ele falhou, para a alegria do combinado espanhol.


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