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sábado, 17 de dezembro de 2016

A Era Kanela, o período mais vitorioso da história do basquete brasileiro

Sob o comando de Togo Renan Soares, o Kanela, a Seleção Brasileira de Basquete Masculino conquistou dois títulos mundiais (Chile-1959 e Brasil-1963) e ainda ficou com mais dois vice-campeonatos (Brasil-1954 e Iugoslávia-1970), além de ganhar uma medalha de bronze (Uruguai-1967). Nos Jogos Olímpicos de Roma-1960, o treinador ainda faturou medalha com um terceiro lugar. E conquistou um inapelável pentacampeonato sul-americano. Integrante do Hall da Fama da Federação Internacional de Basquete (FIBA), ele acumulou 87 vitórias e 16 derrotas em 21 anos de Seleção Brasileira. Obcecado por contra-ataques, o técnico da seleção brasileira era cirúrgico nas substituições e nos pedidos de tempo. O sistema de contra-ataque foi revolucionado por ele com uma linha de três atacantes na execução do mesmo, ação largamente utilizada pelo técnico Kanela nas seleções brasileiras que dirigiu, o qual dependia basicamente do domínio dos rebotes defensivos, setor que a Seleção Brasileira de Kanela dominava como ninguém, somada à velocidade e habilidade de homens altos, treinados repetidas vezes para aquele movimento. Com mão de ferro e carga tática invejável, Kanela brilhou no Flamengo, onde foi decacampeão estadual, entre 1951 e 1960. O bom trabalho em terreno doméstico o levou à seleção em 1954, quando iniciou uma jornada repleta de conquistas. Morreu em 12 de dezembro de 1992, aos 86 anos, com o título de maior técnico do basquete brasileiro em todos os tempos.

O imponente nome de batismo, dado em homenagem a um almirante japonês (Togo) e a um filósofo francês (Renan), não conseguiu impedir que, ainda garoto, ganhasse dos amigos o apelido de “Canela”, em função das canelas finas que ostentava. Kanela começou como técnico das equipes de base de futebol do Botafogo. Em 1929, chegou a dirigir a equipe principal do clube, além de ter sido também um bom treinador de polo-aquático do mesmo alvinegro carioca. Em 1944, mudou de clube, assumindo o time de futebol do Flamengo. Aconteceu dois anos depois aquela que talvez tenha sido a grande virada em sua biografia, quando Kanela passou a responder pela equipe de basquete do clube vermelho e preto carioca. Dali em diante, se descortinou uma das mais brilhantes carreiras de um brasileiro no mundo do bola ao cesto, como era chamado à época.

Kanela, com a faixa de campeão

Pouco mais de 10 anos depois de deixar o comando da Seleção Brasileira, Togo Renan Soares, o Kanela, relatou suas memórias ao jornal A Gazeta Esportiva, de São Paulo. Na edição do dia 18 de dezembro de 1983, o ex-treinador relembrou o jogo decisivo diante dos Estados Unidos no Mundial-1963 e revelou detalhes da campanha.

“Estou com 79 anos e quero aproveitar a lucidez que ainda me sobra para contar detalhes importantes das 15 vezes em que dirigi o selecionado brasileiro de basquete. Não foi fácil como muita gente pensa, nem mesmo sabendo que na época vivíamos uma fase de ouro, com craques que dificilmente serão substituídos”, iniciou.

Em 21 anos no comando da Seleção Brasileira, Kanela disputou um total de 103 partidas. A vitória diante dos norte-americanos por 85 a 81, alcançada no dia 25 de maio de 1963, foi um dos duelos mais especiais para o ex-treinador, já que garantiu o bicampeonato mundial.

“Esse jogo foi tão importante na minha vida de técnico, que até hoje ficou gravado na memória. Lembro-me que estivemos sempre na frente, até quando faltavam menos de três minutos para o final. Eu, num lampejo divino, senti que quem perdesse o pivô com cinco faltas naquele instante perderia também o jogo, e fizemos uma jogada para eliminar o Gibson”, recordou.

Exigente, ele não deixou de elogiar seus atletas. “O Amaury e o Wlamir eram os alicerces do time. Eu confesso que os considerava insubstituíveis por qualquer tempo que passasse. O Sucar, com 2,06m de altura, também era muito importante para o time, principalmente porque estava no esplendor de seu estado físico”, afirmou.

Além dos pódios em campeonatos mundiais (ouro no Chile-1959 e no Brasil-1963, prata no Brasil-1954 e na Iugoslávia-1970 e bronze no Uruguai-1967), Kanela também comandou o time nacional na conquista de uma medalha olímpica de bronze (Roma-1960). Em 1983, ele foi profético.

“Até hoje, nenhum técnico brasileiro de qualquer modalidade esportiva deu ao País tantos títulos como o basquete na Era Kanela. Admito que estou sendo vaidoso, mas como já dizia o General Tibúrcio, se eu não contar as coisas boas que fiz, quem poderá contá-las? Os êxitos alcançados nessas campanhas são de tal importância que por muito tempo serão insuperáveis”, vaticinou.

Em 22 de maio de 2013, também para a Gazeta Esportiva, alguns jogadores que estiveram com ele na Seleção Brasileira deram depoimento sobre ele:

“O Kanela é a grande personalidade do basquete do Brasil em todos os tempos. Graças a ele, a Seleção conquistou todos os seus títulos na época e alcançou um nível de excelência. Era um homem obstinado em ganhar títulos, e fazia tudo o que podia para conseguir esses resultados. Era muito hábil para tratar o aspecto psicológico dos jogadores”, enumerou Amaury Passos.

“Sem o Kanela, a nossa geração não conseguiria os resultados que conseguiu. Da mesma forma, ele não alcançaria os feitos que alcançou sem a nossa geração. Foi realmente um grande comandante, que teve ao seu lado jovens com um potencial enorme jogando um basquete diferenciado para a época em uma simbiose que acabou dando certo (...) O Kanela não era um grande conhecedor de basquete. Na verdade, ele aprendeu os detalhes da modalidade praticamente do nada (...) Era um homem capaz, que se cercava de profundos conhecedores dos aspectos técnicos do jogo. Dentro da quadra, era um excelente dirigente de partida. (...) Na época do Kanela, treinávamos muito. A preparação antes de um campeonato não era de 15 dias, mas sim de meses. Para o Mundial-1963, o treinamento começou em agosto de 1962 e acabou com a competição em maio do ano seguinte. Ficamos esse tempo todo confinados treinando, treinando e treinando. Nesse período, teve um Sul-americano e um Pan-americano”, narrou Wlamir Marques.

“O Kanela foi o criador de tudo, porque tomava conhecimento das coisas antes de elas chegarem ao Brasil. Hoje em dia, se eu te falo que fulano deu uma enterrada, você entende, porque vê pela televisão. Na nossa época, se alguém fazia um arremesso nos Estados Unidos, a gente só ficava sabendo cinco meses depois. O Kanela antevia alguns conceitos, como o jump. Ele dizia: pula para arremessar”, contou Paulista.

Opinião de Édson Bispo, em entrevista ao site da CBB em 2006: "O Kanela foi o grande mentor e organizador dessa geração vencedora do basquete masculino. Ele cobrava bastante da equipe para que jogássemos o melhor possível, mas sempre cuidou muito bem do atleta. Ele supervisionava tudo para que tivéssemos boas condições de trabalhar na seleção. Ele ficava bravo mesmo era com os juízes, quando se achava injustiçado, e com os dirigentes, pois sempre brigava pelos direitos e pelo máximo conforto dos atletas de sua equipe. Ele é uma grande referência para qualquer um que goste de basquete. Ele que me incentivou a treinar a seleção, me dando dicas e orientações".

Para o mesmo site da CBB, Rosa Branca falou em 2003: "Kanela era um técnico excepcional, com uma grande paixão pelo basquete. Sem ele e sem esse grupo excelente de jogadores, a conquista do bicampeonato mundial seria impossível".

Sua personalidade forte também deixou rastros polêmicos, como na história contada por seu ex-assistente-técnico no Flamengo, Paulo Murilo: "No Campeonato Mundial realizado no Maracanãzinho, no intervalo da partida entre o Brasil e a União Soviética, também um jogo duríssimo e indefinido até aquele momento, o arbitro uruguaio, que vinha se destacando no Mundial e que dirigia o jogo, retirava-se para o vestiário quando o Kanela dele se aproximou e sem maiores explicações desferiu uma bofetada que foi ouvida até por quem estava sentado no último degrau da arquibancada. Correu um frisson no estádio, ninguém poderia entender aquela atitude, naquele momento de intervalo de um jogo bem disputado por todos. Kanela foi expulso e o Brasil venceu a partida. Dois anos mais tarde fui convidado por ele para ser técnico das equipes infanto e de juvenis do Flamengo, onde iniciei uma relação respeitosa mas não ausente de boas e até duras discussões, não só técnicas, como administrativas. Num belo dia, sentados no restaurante da Gávea, perguntei a ele sobre aquele momento anos antes, e ouvi do velho Togo a seguinte resposta: o fato é que ele estava apitando bem demais, e isso não nos interessava. Ele precisava errar um pouco, de preferência a nosso favor, por isso gerei nele o peso da dúvida de que não era tão bom como imaginava, por isso dei a bofetada". Outros tempos em que havia muito mais tolerância ao politicamente incorreto... sobre este episódio, na época Nelson Rodrigues até escreveu uma crônica, chamando-o “O Tapa Cívico”.

Histórias fantásticas lembradas também por seu sobrinho, Jô Soares, apresentador de televisão, para o site o UOL em 2013: ""Uma vez fui com ele ao campo do Botafogo, em General Severiano. Devia ter no máximo oito anos. De repente, no meio do primeiro tempo, ele falou para mim 'Zezinho, fica sentadinho aqui quietinho que o tio Kanela vai ali do outro lado bater naquele canalha que está sentado ali e já volta'. Foi lá, brigou com o cara e voltou. A partir desse dia meu pai falou 'nunca mais você leva meu filho a um jogo' (...) Kanela tinha medo de água: "Por causa dos esporros que dava, os remadores, de sacanagem, ficavam balançando o barco. Aí ele falava com uma doçura incrível 'vou pedir aos senhores remadores, que já estão cansados, por favor vamos voltar. O treino de hoje foi muito exaustivo'. Quando saltava do barco, dava um esporro monumental: 'vocês querem me matar' (...) "Fui uma vez no Flamengo em um jogo em que ele estava suspenso. Ele estava sentado lá em cima e o juiz que estava apitando era o mesmo que ele tinha dado um tapa e sido suspenso. Aí ele gritava lá de cima: 'já apanhou e vai apanhar de novo'. E a torcida toda dava força: 'é isso mesmo seu Kanela, esse juiz é um filho da p...' (...) "Quando estava com jogadores machucados, tinha vezes que saía e encharcava a quadra, que era externa, de madrugada. Todo mundo presumia que tinha chovido de madrugada. Uma vez alguém falou 'nossa seu Kanela, engraçado que choveu só na quadra'. E ele respondeu 'cala a boca, não fala nada'. Ele era uma figura" (...) "De vez em quando ia almoçar lá em casa ou jantar, mas encontrava mais com ele no Jockey Clube. Ele adorava corrida de cavalo. Chegava de uma viagem e nem passava em casa, ia direto se fosse dia de corrida".

A matéria de 24 de maio de 2013 publicada no UOL termina com mais opiniões de jogadores que conviveram com ele na Seleção Brasileira:

Wlamir Marques, capitão do Brasil no Bi-Mundial em 63: "Tive três problemas com ele, mas nunca trocamos qualquer palavra brusca. Todas as brigas que tivemos foram de acertos que ele não concordou. O Brasil não teria conseguido esses feitos se não fosse a mão de ferro dele. Podia não ter uma técnica espetacular, mas lia muito e sabia como levar o time. Comandava bem a sua tropa".

Amaury Pasos, eleito melhor jogador do Mundial de 63: "Convivi com o Kanela por 16 anos sem nenhum problema. Foi uma grande personalidade do basquete brasileiro, o grande ator dessas conquistas. Seu temperamento era histórico, usava todos os artifícios para que pudéssemos ganhar".

Jatyr: "Só tinha bom relacionamento com dois jogadores [Amaury e Wlamir]. Não só respeitava, como acatava e ouvia. O restante era na base da porrada, podendo menosprezar, ele faria. Era um técnico bem radical. Vamos dizer que eles tinham uma patente superior, os outros eram soldados rasos".

Succar: "Nunca jogou basquete na vida, mas tinha uma coisa própria dele que conseguia se relacionar e ter a técnica do basquete. Tinha muita autossuficiência. Era um técnico privilegiado, nunca jogou basquete ou esporte nenhum, mas estudava estratégia".

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